
Imagine o Sr. João, 68 anos, admitido por choque séptico às 3 h da manhã. Você começa o protocolo de SEPSE. 1500ml cristalóide depois, a pressão ainda cai e o paciente piora o padrão ventilatório. Nessa encruzilhada, você pega o ultrassom, avalia a VCI, a função cardíaca e padrão pulmonar em busca de linhas-B. A pergunta que ecoa sobre o leito é a mesma que todos nós fazemos: vale a pena fazer mais volume? E posso mesmo confiar no POCUS para ajudar a me decidir ? É justamente aí que entra a nova revisão sistemática com meta-análise e análise sequencial de Sharif et al., publicada em maio de 2025, que coloca evidência fresca sobre a mesa.
Pergunta do estudo
Em adultos criticamente enfermos, usar POCUS para guiar ressuscitação/deressuscitação volêmica, comparado ao cuidado usual sem ultrassom, melhora desfechos clínicos?
PECO
P | Adultos ≥ 18 anos em emergência ou UTI, maioria sépticos |
E | Algoritmos dinâmicos baseados em POCUS (VCI, PLR + VTI, LUS, ecocardio, Doppler esofágico) |
C | Estratégias padrão (pressão venosa central, sinais clínicos, EGDT) sem US |
O | Mortalidade 28–90 d, balanço hídrico 72 h, VM, LOS-UTI, vasopressor, AKI, RRT |
Como a revisão foi feita
Registro PROSPERO e método PRISMA cumpridos; buscas até 6 fev 2024.
17 ECRs, 1 765 pacientes; 11 com baixo risco de viés (RoB 2.0)
Modelo randômico + TSA: benefício clinicamente relevante definido como RRR 10 % em mortalidade.
Resultados-chave

Desfecho | Efeito | Certeza GRADE |
Mortalidade | RR 0,79 (0,67–0,95) — 6 mortes evitadas a cada 100 pacientes tratados | Baixa |
Balanço hídrico 72 h | –0,72 L (média) | Baixa |
VM, LOS-UTI, vasopressores, AKI, RRT | Efeitos incertos; intervalos amplos | Muito baixa |
Por que importa para você que está à beira-leito?
Confirma a bússola do zero-litro extra – Cada litro positivo se associa com um aumento significativo da mortalidade de pacientes críticos. Cortar 700 mL nas primeiras 72 h não é trivial.
Conversa com diretrizes modernas – A nova guideline da ESICM (2025) inclui, pela primeira vez, uma seção inteira sobre índices ultrassonográficos dinâmicos para evitar tanto hipovolemia quanto congestão.
Sinaliza um caminho para VExUS – Nenhum ECR da amostra usou VExUS, mas o protocolo ANDROMEDA-VExUS está em recrutamento, devendo refinar a monitorização da congestão.
Efeito consistente com outras sínteses – Meta-análise de 2024 em septic shock já apontava RR 0,78 para mortalidade com POCUS-guiado.(journals.lww.com)
Limitações & cuidados ao interpretar
Heterogeneidade clínica alta: diferentes janelas, frequência de reavaliação e alvos de fluidos geram I² elevado em vários desfechos.
Certificação do operador raramente descrita — 10/17 estudos não relataram treinamento formal, o que pode limitar a reprodutibilidade.
Ausência de cegamento: desenho pragmático inevitavelmente aberto.
Baixa certeza GRADE; TSA revela amostra insuficiente para conclusões definitivas.
Pitfalls clássicos do POCUS – Más janelas, interpretação de artefatos e avaliação isolada (sem integração clínica) seguem sendo armadilhas já conhecidas.
O que podemos aprender?
O que esse trabalho traz de novo é que é a primeira evidência de ensaios randomizados a sugerir redução de mortalidade com POCUS-guiado — um salto em relação ao nível de opinião de especialista que sustentava recomendações anteriores. Ele também quantifica, ainda que com incerteza, o ganho de balanço negativo precoce e posiciona a necessidade de estudos com VExUS e protocolos padronizados. Para nós, fica o recado: POCUS não é mais “nice to have”, mas peça estratégica para dosear fluidos com parcimônia — desde que operadores estejam treinados, protocolos sejam claros e que cada imagem seja interpretada à luz do quadro clínico.
Referência
Sharif S, Flindall H, Basmaji J, et al. Critical Care Ultrasonography for Volume Management: A Systematic Review, Meta-Analysis, and Trial Sequential Analysis of Randomized Trials. Crit Care Explor. 2025;7:e1261. DOI: 10.1097/CCE.0000000000001261.(pubmed.ncbi.nlm.nih.gov)