
Você está de plantão e recebe um paciente em choque, a história sugere choque séptico. Você inicia a ressuscitação volêmica, coleta culturas, prescreve antibioticoterapia, porém o paciente evolui com um piora hemodinâmica. Ao realiza o exame cardíaco focado (FOCUS), identifica uma função de ventrículo esquerdo gravemente reduzida e muda a conduta.
Essa foi a pergunta do maior estudo prospectivo multicêntrico britânico sobre ecocardiografia no choque, cobrindo 178 UTIs e 1 015 pacientes.
Pergunta do estudo
Adicionar ecocardiografia ≤ 72 h na admissão de adultos com choque altera decisões terapêuticas ou reduz a incerteza diagnóstica em comparação a não usar eco?
Desenho PECOT
Elemento | Descrição |
População | 1 015 adultos (≥ 18 anos) com choque (PAS < 90 mmHg ≥ 30 min ou vasopressor + hipoperfusão) em 178 UTIs do Reino Unido/Crown Dependencies (mar 2024) |
Exposição | Ecocardiografia (focada ou abrangente) realizada ≤ 72 h (54 % receberam; 43 % ≤ 24 h; 7 % ≤ 1 h) |
Comparador | Não realização de eco no mesmo intervalo |
Outcome (Desfecho) | Relato da equipe de mudança de conduta ou ↓ incerteza diagnóstica; adesão a governança (imagens + laudo) |
Tipo de estudo | Coorte prospectiva, multicêntrica, observacional |
Protocolo do eco no estudo
Etapa | Detalhes-chave |
Modalidade do eco realizado | 365 focados (67 %), 180 abrangentes (33 %); 1 % TEE |
Operadores | 58 % equipe de terapia intensiva; 32 % cardiologia/fisiologia |
Tempo até eco | Focada: mediana 4 h (IQR 1-12); Abrangente: 16 h (6-28) — p < 0,0001 |
Acreditação | 56 % por profissionais certificados (FUSIC 59 %, BSE TTE2 25 %, outros) |
Governança | Somente 25 % das ecocardiografias com imagens arquivadas e laudo estruturado conforme diretriz |
Checklist STROBE
Seção | Pontos fortes | Pontos a melhorar |
Título/Resumo | Define “prospective, multi-centre” | Não coloca “cohort” no título |
Métodos | Critérios claros de choque, follow-up 72 h, coleta REDCap | Sem cálculo de amostra; sem análise multivariada |
Viés | Definição uniforme + protocolo; 70 % das UTIs do UK incluídas | “Mudança de conduta” subjetiva; possível efeito Hawthorne |
Resultados | Flowchart, estratificação por tipo de choque, p-values | Não reporta desfechos duros (mortalidade) |
Discussão | Reconhece limitações, sugere barreiras de acesso | Não explora soluções práticas para governança |
Resumo dos resultados
Métrica | ECO realizado (n = 545) | Sem ECO (n = 470) |
Qualquer impacto (↓ incerteza ou mudança) | 291 (54 %) | — |
Mudança de conduta direta | 270 (50 %) | — |
↓ Incerteza diagnóstica | 120 (22 %) | — |
Impacto por etiologia | Obstrutivo 75 %; Cardiogênico 58 %; Misto 58 %; Hipovolêmico 44 %; Distributivo 36 % | — |
Focada vs Abrangente | 46 % vs 56 % mudaram conduta (p = 0,037) | — |
Governança completa | 25 % dos exames dos exames com laudo e registro de imagens | — |
✅Pontos fortes do estudo:
Cobriu 70 % das UTIs britânicas. O maior estudo até o momento realizado → alta generalização
Coleta prospectiva padronizada (REDCap)
Estratificação detalhada por tipo de choque e modalidade de eco
⚠️Limitações:
Definição de “impacto” subjetiva e sem verificação independente
Nenhum outcome clínico duro (mortalidade, SOFA)
Baixa aderência a governança pode subestimar ensino/QA
Possível viés de seleção (UTIs pró-eco aderiram mais)
Take-home messages para quem respira POCUS
Foque nas primeiras horas: FOCUS em ≤ 4 h mudou conduta ou esclareceu o quadro em 1 a cada 2 choques.
Cardiogênico/Obstrutivo são “gold mine”: eco alterou manejo em 58 - 75 % desses pacientes.
Focada resolve, abrangente refina: faça o FOCUS já; peça a TTE completa quando possível
Treinamento validado conta: > 50 % dos exames vieram de operadores acreditados; uma realidade diferente da Brasileira.
Reflexão final:
A incorporação de um FOCUS sistemático nas primeiras horas de choque representa um avanço tangível na abordagem hemodinâmica: ao revelar, em tempo real, disfunção ventricular grave, tamponamento, sobrecarga de VD ou hipovolemia franca, o eco permite que intervenções dirigidas aconteçam antes que a espiral do choque se instale. Mas quem, na prática, é o melhor candidato a esse “eco-decisor”? — E aqui vai uma opinião de especialista. TODOS. Mas em especial nos pacientes com choque de etiologia não esclarecida ou suspeita de cardiogênico/obstrutivo. Nos pacientes com suspeita de choque cardiogênico ou obstrutivo, o FOCUS precoce mostrou maior capacidade de redefinir a estratégia terapêutica (≥ 58 % de mudança de conduta no estudo). Nesses cenários, deixar o eco para depois pode significar perder a janela de reperfusão, trombólise ou drenagem de pericárdio no tempo ideal. Já nos choques distributivos puros, em que o manejo guiado por volume e vasopressor é mais protocolar, o eco continua útil, em especial para guiar a terapia de fluidos, descartar outras causas, mas o impacto absoluto é menor (≈ 36 %).
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Referência:Flower L, Waite A, Boulton A, et al. The use of echocardiography in the management of shock in critical care: a prospective, multi-centre, observational study. Intensive Care Med. 2024;50:1668-1680. DOI 10.1007/s00134-024-07590-6